La Loba

De tempos em tempos, caminhamos por desertos. Secos e áridos como sempre são, às vezes caminhamos pela sua areia macia e deixamos nossos pés vagarem sem rumo, mas também fingimos que sabemos por onde estamos indo.   
De tempos em tempos, caminhamos por desertos. Secos e áridos como sempre são, e ao pisarmos na areia quente, sentimos seus grãos machucarem nossos pés e nos sentimos perdidos.  Às vezes, encontramos um oásis. Às vezes, encontramos apenas um céu sem fim. E no meio desse deserto meus ossos estão enterrados. Andei, andei, ando, andarei. E tropeço aqui e ali. Muitas vezes, acerto meus passos, mas em outras eu cambaleio e tropeço nos meus ossos. Minhas estruturas. Meus cacos que me cortam os pés. Sento, choro, me lamento, me vitimizo. Amaldiçoo a vida. Me sinto um cadáver caminhando sob o sol. Meu corpo, meus sentidos estão dormentes. Estou morta em vida.

Então, eu paro. Respiro. Peço ajuda. Olho para o céu e fecho os olhos. Sinto o vento contra os meus cabelos que ficam desalinhados de uma forma generosa e divertida.
Olho para baixo novamente. Vejo meus ossos, aqui e ali. Então, me abaixo e passo a recolhê-los. Um aqui e outro ali. Pego uma pilha e ao pegar mais um osso, os outros caem. Recomeço. De novo. De novo e de novo. Choro. Praguejo. Uivo em lamento. E recomeço. Uma vez mais e mais outra, até que os ossos, não sei se todos, estão comigo. 

Caminho. Levo os ossos comigo e paro em algum lugar desse deserto. Me parece um oásis. Consigo, com o que tem ali, com recursos que busco, fazer uma fogueira. E começo a montar esse esqueleto. Quanto está montado, contemplo o que tenho e o que vejo. Ouço o fogo crepitar. Então, numa súbita inspiração, começo a cantar. Baixinho, pra ninguém ouvir - e quem ouviria? - depois mais alto e mais alto, de olhos para o céu que começa a anoitecer, até sentir o chão tremer aos meus pés.

Quando olho para baixo, vejo que o esqueleto está estalando e me abaixo para perceber que essa ossada está se compondo de músculos, de órgãos... e sigo cantando mais e mais. Um canto dolorido, um canto doce, um canto vigoroso, um canto de vida, de dor, onde mágoa, ressentimento, raiva, de garra, se ampliam e me fazem tremer. 
Olho para o chão novamente. Me vejo em assombro. O esqueleto se cobre de pelos. Sinto um tremor me sacudir e meu canto parece um uivo cada vez mais alto. Então, parece que meu peito e minha consciência explodem e sinto como se algo se partisse de mim. O lobo se levanta e sai correndo deserto à fora... e mais ao longe percebo que o deserto se torna planície e mata. Uma luz atinge o lobo... primeiros raios da lua, últimos raios do sol. De repente, o lobo se transforma em uma mulher. E nela vejo meu rosto. Ela sou eu. 


Escrevi esse texto após ter lido o primeiro capítulo, La Loba, do livro Mulheres que Correm com os Lobos, de Clarissa Pínkola Estés. 






 

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